Almeida Garrett como profeta

Não me surpreenderia que, daqui por vinte ou trinta anos, os meus editores, zelosos do meu bom nome, e – decerto acessoriamente – das suas receitas, fizessem publicar o relato destas viagens sem uma única referência aos pavorosos acontecimentos da lezíria, à nossa odisseia com a vampira, ao próprio Van Helsing. São sempre os triunfadores a escrever a História, e os dos tempos que aí vêm hão-de ser tentados a reescrevê-la sem estes incidentes, impróprios de nações civilizadas: como toda a gente sabe, não há vampiros, nem outros personagens corruptos.

Muito menos em Portugal.

domingo, 31 de janeiro de 2010

De que falamos quando falamos de Viagens na Minha Terra com Vampiros

Agora que os remakes se tornaram parte do eco-sistema contemporâneo (carros, filmes, músicas, estilos – da arquitectura ao vestuário – vão repetindo modelos do passado), o que era surpreendente era que os originais literários não fossem eles próprios refeitos. Tal atraso ficou certamente a dever-se à sobrevalorização da criatividade nos meios literários: em vez de admitir que andamos há séculos a rescrever Shakespeare, cada novo Autor se engana a si – e engana os outros – pretendendo ter criado uma nova obra. Pierre Menard, que era um verdadeiro original, recriou, palavra a palavra, o Quixote; muito naturalmente, não teve seguidores. O caminho entre a clonagem perfeita e a novidade havia de estar, portanto, na variação das formas, na adição dos conteúdos, na melhoria da performance do livro – numa palavra: no tuning.

A experiência dos Quirk Classics foi a de aplicar um kit de transformação ao original de modo a fazê-lo passar para o universo da origem da intervenção. Pride and Prejudice and Zombies (2009) é literatura clássica convertida às convenções do sub-género dos mortos-vivos, e Sense and Sensibility and Sea Monsters (2009) rende-se aos protocolos do sub-género dos monstros marinhos – em ambos os casos com reciclagem das características dos personagens originais, e cerzindo, de forma imperceptível para o leigo, os eventos típicos dos respectivos tipos literários nos lugares e nos tempos dos textos base. Esta operação de metamorfose de obras clássicas da literatura é uma variante do ready made: sobre-impondo-lhes elementos estranhos, obtém-se a sua deslocação para outra área de sentido.

Nas Viagens na Minha Terra com Vampiros, a primeira experiência de um Clássico Artilhado em língua portuguesa, sobrepus à estrutura original de Almeida Garrett um conjunto de elementos exógenos correspondentes a um sub-género contemporâneo. Porém, ao invés do blending dos Quirk Classics, mantive o apartheid das duas componentes, tornando-as distrinçáveis para o leitor atento. E, sobretudo, tentei não deixar deslizar o texto intervencionado para o universo do sub-género aditado: por adições e subtracções, que pretendi cirúrgicas, fiz coexistir os métodos narrativos originais e os que importei do livro clássico do género (Dracula, de Bram Stoker – de que o presente livro seria uma prequela, por razões que serão óbvias ao leitor), de modo a que o todo fosse portador de um sentido que não estava em nenhuma das suas partes.

Assim, em vez de o original ser absorvido pelas alterações, absorveu-as e sujeitou-as à sua lógica.

Não é um livro de vampiros: são as Viagens na Minha Terra – como poderiam ser com eles.

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